Acabou o almoço grátis
Marcus Mendes

Acabou o almoço grátis

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Depois do (provável) lançamento do iOS 14.5 nesta terça-feira, o mundo da tecnologia nunca mais será o mesmo. Assim que alguém lá dentro da Apple clicar no botão “Publicar” e liberar o sistema para alguns milhões de iPhones e de iPads ao redor do mundo, finalmente teremos de volta o controlo sobre a nossa privacidade (pelo menos por alguns dias, até Zuck & cia encontrarem uma falha que reiniciará o jogo de gato e rato com a coleta dos nossos dados).

Caso não estejas a par do que está a acontecer, eu explico: o iOS 14.5 traz uma função chamada App Tracking Transparency, ou ATT, que dará a cada utilizador a opção de permitir ou não ser rastreado entre aplicações. Cada app terá que pedir a permissão do utilizador para aceder ao número identificador daquele dispositivo para, posteriormente, exibir publicidade direcionada com base nas informações coletadas em outras aplicações utilizando este mesmo número. Se o utilizador rejeitar este pedido (o que eu certamente farei), a app será impedida pelo sistema de fazer este tipo de rastreamento.

A estimativa que li recentemente é que aproximadamente 60% dos utilizadores irão optar por ativar a maior privacidade. Eu acho pouco, mas vamos lá: considerando que hoje o iOS tem 27,5% de market share frente ao Android, isso significa que o recurso será ativado em 16,5% dos aparelhos a nível global. Se hoje existem 3,8 milhões de dispositivos móveis ativos pelo mundo, teoricamente teremos um total de 627.000.000 iPhones e iPads que optarão por não serem rastreados. Irei além: se considerarmos que em fevereiro a Apple tinha dito que 86% dos dispositivos estavam a rodar o iOS 14 e, partindo da premissa de que todos esses aparelhos atualizarão para o iOS 14.5, chegamos ao número final de 539.220.000 iPhones e iPads que passarão a contar com essa privacidade reforçada.

Ainda tenho a sua atenção? OK. Vamos em frente. Tem só mais um pouquinho de matemática, mas prometo que já está a acabar.

De acordo com o relatório mais recente da Sensor Tower, a App Store foi responsável por 65% do faturamento do mercado de aplicações no primeiro trimestre de 2021. Este número tem sido relativamente consistente por anos, então parece-me apropriado que dê para extrapolar isso para o faturamento do Facebook também. Segundo o último relatório fiscal do Facebook, 97% dos US$ 28,1 milhões que ele faturou vieram de publicidade. Se 65% disso foi proveniente de utilizadores do iOS, isso correspondeu a US$17,6 milhões. Apliquemos os 86% de adoção do iOS 14, depois apliquemos os 60% de adoção do ATT, na prática essa mudança significa que o Facebook perderá…. US$ 0.

Sim, porque o facto de não nos conseguir rastrear não significa que ele deixará de veicular anúncios. Ele continuará exibindo exatamente a mesmíssima quantidade de anúncios que ele exibe hoje, independente das preferências de privacidade do utilizador. O que vai mudar é que ele perderá a possibilidade de rastrear, extrair, explorar e abusar dos dados coletados em 539.220.000 iPhones e iPads para exibir publicidade micro-direcionada.

Mas por que o Facebook, então, está a fazer tanto alarde com essa mudança? Bem, preciso confessar que a minha matemática não está exatamente perfeita. É claro que com a redução da possibilidade de exibir publicidade micro-direcionada para aproximadamente 16,5% dos seus utilizadores, o Facebook se tornará… bem… 16,5% menos relevante para os anunciantes que passaram os últimos 17 anos acostumados com esse micro-direcionamento. Mas não podemos esquecer-nos de um facto importante aqui: eles só passaram os últimos 17 anos veiculando campanhas micro-direcionadas no Facebook porque o Facebook passou os últimos 17 anos a aproveitar-se da inocência dos utilizadores e da impossibilidade técnica da Apple e do Google de impedir essa exploração dos nossos dados.

Frente a isso, o Facebook já está a avisar os acionistas e anunciantes que é bem provável que ele não entregue os mesmos números que ambos já estavam tão acostumados a ver em relatórios de campanhas e relatórios fiscais. E parece-me bastante óbvio que não irá demorar para que o Android adote um recurso igual ao do iOS, pavimentando de vez o caminho para o fim absoluto da exploração desenfreada dos dados de utilizadores que não tinham a possibilidade de rejeitar a situação.

Quanto mais eu penso sobre este assunto, mais vejo essa questão da privacidade com incredulidade. Imagino que no futuro, dizer que um dia os sistemas não permitiam um rígido controlo sobre a coleta de dados parecerá tão absurdo quanto a ideia de permitir fumar em aviões. Nós estamos a viver os últimos dias de uma era bastante primitiva da web moderna, em que empresas como o Facebook conseguiram montar um modelo de negócio multimilionário 97% apoiado em uma possibilidade técnica que pôde ser eliminada com um simples clique de um botão “Publicar”. Mais do que isso, estes são os últimos dias em que esta situação completamente absurda parecia ser normal.

Mas, e o resto das redes sociais? E as outras empresas que também exploram os nossos dados? Pois bem. Esta é a beleza de toda essa mudança. Elas também ficarão impedidas de explorarem nossos dados dessa forma, e precisarão jogar o jogo sob as mesmas regras que todas as outras empresas e redes sociais (que não abusam dos nossos dados da mesma forma) jogam. O iOS 14.5 devolverá não só o nosso direito de proteger nossos dados, mas nivelará completamente a concorrência especialmente no mercado social. É bem verdade que o Facebook (e, sejamos francos, o Twitter, o Snapchat, o LinkedIn e tantos outros) irão encontrar formas alternativas de continuar extraindo nossos dados e cruzando informações para vender a possibilidade de veicular publicidade direcionada. Estas empresas têm dinheiro e programadores talentosos mais do que suficientes para poder dedicar centenas de horas a isso, sem muito impacto no resto do desenvolvimento da empresa.

Por outro lado, no longo prazo, consigo imaginar uma realidade em que essa exploração inescrupulosa dos nossos dados deixará de ser considerada normal. Consigo visualizar um futuro em que esse abuso dos dados será visto com o mesmo desprezo quanto o abuso dos nossos pulmões pela indústria tabagista ou da violência humana pela indústria armamentista.

Consigo, até, imaginar um futuro em que uma função que aumente o respeito pela nossa privacidade seja o padrão, e não algo lançado no esquema de opt-in. Algo, inclusive, que a Apple pretendia fazer originalmente, mas teve que ceder após a pressão do mercado publicitário. Mas tudo bem. Essa mudança precisava começar de alguma forma.

Sê bem-vindo, iOS 14.5. Mal nos conhecemos, mas já gosto muito de ti.

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Crónicas