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Está na hora da Apple voltar a pensar diferente.
Marcus Mendes

Está na hora da Apple voltar a pensar diferente.

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Eu acho que das controvérsias que envolveram a Apple na história (relativamente) recente da empresa, a reação ao caso do iPhone 4 perdido ainda é a que mais me incomoda.

Para quem não se lembra, semanas antes do anúncio do iPhone 4, o site Gizmodo publicou uma matéria exclusiva com fotos de uma unidade do aparelho que um azarado engenheiro da Apple havia esquecido num bar.

Após uma sequência de eventos e uma transação de US$ 5.000, o iPhone 4 perdido foi parar nas mãos do jornalista Jason Chen, que publicou a matéria This is Apple’s Next iPhone no site Gizmodo.

Vê… se hoje em dia, as leaks do visual do próximo iPhone já é algo bastante corriqueiro, este definitivamente não era o caso em abril de 2010. Ainda sob o comando da mão de ferro de Steve Jobs, as leaks eram bem mais raras. E mesmo quando aconteciam, eram de coisas bem menos relevantes do que o design do próximo iPhone.

Por isso, a reação da Apple, ou melhor, de Jobs, foi bastante dura. Poucas horas depois de Steve Jobs ligar pessoalmente para o Brian Lam, à época editor do Gizmodo, pedindo o telefone de volta (e tendo seu pedido recusado), a polícia invadiu a casa de Jason Chen com um mandato de busca e apreensão não só do aparelho, mas também do computador do jornalista.

Depois disso, o Gizmodo passou anos banido de todos os eventos da Apple, e só pôde voltar a aparecer por lá muito depois do falecimento de Steve Jobs.

Acho que esta foi a primeira vez que me senti decepcionado com uma decisão moral da Apple. Justamente ela. A mesma empresa que antes se dizia a defensora dos crazy ones e dos troublemakers, agora estava a enviar a polícia para derrubar a porta de um jornalista que estava a fazer seu trabalho.

É claro que entendo perfeitamente que a situação desde o começo já era bastante errada, e o iPhone 4 foi parar na mão do Gizmodo num contexto bastante questionável. Mas a reação até hoje parece-me bastante desproporcional, e mostrou um lado vingativo de Jobs (e, por extensão, da Apple) que o mundo ainda não conhecia.

Depois, claro, todos aprendemos que ele sempre foi assim. Mas à época, foi um choque.

Pois bem. Estou a dar esta volta toda para dizer que, assim como em 2010, vejo a atitude atual da Apple desta mesma forma. O processo da Epic Games, que vi desde o começo como uma alegação ilegítima, tornou-se mais e mais adequado nestas últimas semanas. Eu escrevi recentemente sobre como o processo provavelmente serviria para romper o véu de benevolência da Apple e mostraria a empresa como uma… empresa, e acho que foi exatamente isso que aconteceu.

Nestas últimas semanas, tenho visto a atitude da Apple (especialmente em relação aos desenvolvedores) de uma forma bastante decepcionante. Se ela sempre foi o azarão, representando os rebeldes contra o império engravatado da IBM, hoje ela é o império. Mas usa calças jeans.

Quando as regras da App Store foram estabelecidas, a Apple estava no auge da opinião pública favorável. Sinto saudade, é claro, dos eventos com Steve Jobs e até mesmo Scott Forstall no palco. Mas vejo como isso era parte de um grande teatro para nos distrair e nos fazer  aceitar coletivamente (e sem questionar) os 30% de comissão, a App Store como única alternativa de instalar apps, e muitas outras decisões que, na época, não pareciam ser tão restritivas assim.

Mas não estamos mais em 2010. Há quase uma década, nem Steve Jobs e nem Scott Forstall sobem mais ao palco para apresentar o nosso próximo grande objeto de desejo. O mundo mudou, a estrutura inteira do mercado de tecnologia mudou, e parece-me que a Apple mesmo sabendo disso, seguiu em frente na posição de conforto que, sejamos francos, fomos nós que permitimos e possibilitamos.

É bem verdade que a Apple só chegou até onde ela está porque ela sempre agiu dessa forma. Só temos todos os ótimos produtos que usufruímos todos os dias porque fizemos um cálculo mental que nos levou a concluir que valia a pena aceitar (ou sequer perceber) algumas atitudes draconianas em troca de todo esse conforto e do acesso a tantas tecnologias bacanas.

Eu sempre comento que não é à toa que a Apple é a empresa mais valiosa do mundo. 100% das decisões que ela toma, tem justamente isso como objetivo final. Mas com o tamanho que ela tem, e a influência que ela tem, agora eu vejo que já passou bastante da hora dela olhar no espelho e perceber que se tornou justamente quem ela tanto antagonizou no passado. Que foi deixando os crazy ones, os troublemakers e os misfits, um a um, pelo caminho. É hora de dividir o bolo com quem a ajuda com os ingredientes e com a receita. Enfim, é hora de voltar a pensar diferente. Quem sabe é isso que falta para ela voltar a evoluir como fazia antes.

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