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O gajo que sonhava com uma lata de Diesel e um emprego em Cupertino
Marcus Mendes

O gajo que sonhava com uma lata de Diesel e um emprego em Cupertino

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A vida num escritório é um microcosmo da sociedade: todos precisam de encontrar a melhor forma de conviver, ou de coexistir, sabendo que o próprio espaço termina onde começa o espaço do próximo. Simples? Nem sempre. Eu não sei quanto a ti, mas eu já trabalhei com pessoas bem desagradáveis. Gente que falava alto, gente que cortava as unhas na mesa de trabalho, gente que andava descalça, gente que costumava perfumar o ambiente com odores diversos… Já trabalhei também com gente que, por um motivo ou por outro, me parecia desde o começo que não se encaixaria no perfil ou na filosofia de trabalho compartilhada por todos. Este palpite do curto prazo de validade do novo colega de trabalho era um que eu dificilmente errava, mas eu sempre ficava com a mesma dúvida depois: “como diabos essa pessoa foi contratada, se era tão evidente que ela não se encaixaria bem aqui?”

Lembro-me do caso de um programador Flash que chegou para seu primeiro dia de trabalho e já precisou de entrar numa reunião comigo (que na época trabalhava com motion design), e com o gerente de projetos. Juntos, explicamos-lhe que tínhamos aproximadamente uma semana para entregar um jogo. Explicamos a mecânica enquanto ele, de olhos arregalados, manteve-se quieto durante toda a conversa. Ele saiu para almoçar, e nunca mais voltou. Juro que isso aconteceu. Eu estava lá.

Depois de quase 20 anos a trabalhar com publicidade, casos assim tendem a acumular-se. Mas a dúvida sempre permanece: como é que depois de processos seletivos, múltiplas entrevistas e etc., alguém é contratado para um trabalho que obviamente não saberá fazer? Ou então tem um perfil tão evidentemente diferente de trabalho, que naturalmente não se encaixará na cultura da empresa? Eu sempre achei que isso fosse resultado da limitação da área de Recursos Humanos da agência, aliada à falta de tempo para fazer uma busca abrangente de candidatos que impediam uma análise mais aprofundada da pessoa que estavam prestes a contratar e confiar parte da reputação da agência. Mas nesta semana, a Apple mostrou que este definitivamente é um problema universal.

Para quem não sabe do que estou a falar, é o seguinte: na segunda-feira, surgiu a notícia de que a Apple havia contratado Antonio García Martínez, um ex-diretor de produto da área de publicidade do Facebook, para liderar as iniciativas de rentabilização da App Store e do Apple News.

Até aí, ok. Estranho a Apple, bastiã da privacidade, contratar um ex-Facebook, mas tudo bem. O desafio seria aumentar a rentabilidade sem abrir mão da privacidade, o que imaginei que poderia ter sido até um estímulo extra para Martinez topar assumir o cargo.

O problema foi que, horas depois da divulgação da notícia, começaram a surgir caos, episódios e declarações do passado (não-tão-distante) de Martínez que eram extremamente perturbadoras. Entrevistas, trocas de mensagens e até trechos da auto-biografia intitulada Chaos Monkeys (livro este que o autor dedicou aos seus inimigos) trouxeram à tona opiniões misóginas, racistas e, obviamente, incompatíveis com TUDO o que a Apple sempre promoveu como seus princípios dentro e fora da empresa. Para teres uma ideia, este foi o tipo de coisa que preocupou os futuros colegas de Martínez que, em uma carta coletiva assinada por mais de 2.000 funcionários da Apple, questionava a liderança da empresa sobre a nova contratação:

A maioria das mulheres da região da Baía de São Francisco é molenga, fraca, mimada e ingênua apesar de se dizer globalizada, e geralmente são mentirosas. Elas têm essa atitude feminista de se achar no direito de tudo, e vangloriam-se sem fim sobre independência, mas a realidade é, vindo uma praga epidémica ou uma invasão estrangeira, elas tornar-se-iam precisamente tão inúteis quanto uma mala que você trocaria por uma caixa de balas de espingarda ou uma lata de diesel”.

Não é difícil imaginar por que (especialmente) as mulheres e os estrangeiros que teriam que trabalhar diretamente ou até indiretamente com Martínez se sentiram desconfortáveis, e não é difícil imaginar que a única solução para Apple seria tomar exatamente a atitude que ela tomou: demitir sumariamente Martínez na mesma semana de sua contratação, e reafirmar o seu (agora questionável) compromisso com o bem-estar diverso e igualitário do ambiente de trabalho.

O que eu não consigo entender, e que na verdade é a mesma dúvida que eu sempre tive é: como? Porque no caso de Martínez, não existe um motivo que justifique a sua contratação. Se a Apple não sabia do histórico misógino do executivo, existe uma falha de processo seletivo gigantesca. Se ela sabia e relevou, bem, pior ainda.

De qualquer forma, é claro que após a demissão do executivo, deu-se inicio à discussão sobre qual o direito a Apple tem de penalizar os seus funcionários por atitudes tomadas fora das paredes circulares de Cupertino. Mas esta discussão é falha pois ela parte da premissa de que a vida pessoal e a vida profissional são isoladas uma da outra, o que obviamente é algo impossível de acontecer ESPECIALMENTE se fazes parte de alguma minoria constantemente atacada (por vezes até de forma não-intencional) dentro e fora do ambiente de trabalho. Enquanto alguns gritam “cultura de cancelamento” eu argumento “cultura de consequência”.

É o mesmo caso do Parler e de tantos outros exemplos em que liberdade de expressão e consequências do que é dito provam-se coexistentes, e não excludentes.

Em meio a isso tudo, sigo com duas grandes dúvidas: como é possível que algo assim tenha acontecido justo dentro da Apple, e por onde anda o programador que saiu para almoçar e nunca mais voltou?

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Crónicas