Não é raro grandes mudanças acontecerem bem diante dos nossos olhos, mas só ser possível percebê-las em retrospecto. Desconfio que seja o que está a acontecer com a organização da linha de Macs, com os chips M.
Há algumas semanas, o mercado assustou-se com o facto do modelo base do novo MacBook Pro com chip M2 ter um SSD 50% mais lento do que o seu mesmo modelo antecessor. A explicação prática parece estar no facto de, enquanto este Mac com M1 utiliza dois chips NAND de 128 GB, o novo Mac utiliza apenas um chip NAND de 256 GB. Dos muitos motivos levantados em matérias e podcasts a respeito, um dos principais candidatos foi a (já cansada de ser utilizada como desculpa) escassez global de componentes.
Semanas mais tarde, cá estamos na mesma situação. Mas dessa vez, com o novo MacBook Air com chip M2. Mais uma vez, o SSD do modelo básico oferece uma velocidade 50% menor do que a de seu antecessor, e mais uma vez essa diferença se dá pelo facto do modelo anterior contar com dois chips de memória com a metade do armazenamento, versus um único chip de memória com todo o armazenamento nessa nova versão.
E assim, quando essas discussões voltaram à tona, mas agora sobre o MacBook Air, a hipótese da culpa estar na escassez global de componentes perdeu um pouco a sua força. E não podemos esquecer que isso tudo tenha acontecido pouco tempo depois de uma polémica similar a respeito do iPad Pro, Stage Manager e swap de memória RAM ter tomado as páginas e podcasts sobre a Apple e sobre tecnologia em geral, mais uma vez discutindo uma limitação técnica para o modelo de entrada de uma linha de produtos que não conta com essa mesma limitação nos seus modelos mais caros.
Pois bem. Como aprendi recentemente em For All Mankind, “uma vez, é circunstância. Duas vezes, é coincidência. Três vezes, é ação inimiga”. É bem verdade que o facto dessas três notícias terem vindo à tona praticamente juntas volta a tornar um pouco mais provável a hipótese de que essa é uma decisão operacional excepcional, feita para contornar a falta global de componentes. Afinal, é melhor lançar assim do que lançar qualquer coisa sob o risco de, daqui a dois, três ou seis meses, faltarem peças que possibilitem que o produto siga vendendo aos milhões pelo mundo. Por outro lado, e aqui é a minha aposta, esta me parece ser uma decisão da Apple feita para maximizar a margem de lucro nas vendas desses modelos de entrada, o que do outro lado da balança possibilita que a Apple traga um pouco mais para baixo o preço do modelo topo de linha, aumentando por sua vez a probabilidade de um utilizador optar por este modelo ao invés de um intermediário. E como sabemos que os modelos topo de linha da Apple são os que têm as margens de lucro mais saudáveis, uma venda convertida para um desses é uma vitória ainda maior do que a vitória da economia para as peças de um modelo de entrada.
No fim das contas, pode ser que as duas respostas para a motivação da Apple em fazer isso estejam certas. Em parte, pode ser que a escassez global de chips tenha feito aflorar a possibilidade de, dentro de uma mesma geração e linha de produtos, lançar o modelo de entrada um pouco menos capaz do que o resto da linha. Mas por outro lado, especialmente se todos esses produtos estiverem a vender tão bem quanto nós desconfiamos que estão, parece-me que esta será a nova dinâmica de hardware da Apple. Incluindo para iPhones, que já a esta altura podemos dar como certo que contarão com verdadeiros avanços de câmaras e processamento apenas nos modelos Pro.
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